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Silvia Ribeiro: “A gente não conta para ninguém”

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violencia rio Silvia Ribeiro: A gente não conta para ninguém

Engolimos em silêncio, enquanto comemoramos: "Ainda bem que não sou eu" - Foto: Divulgação

Por SILVIA RIBEIRO*
Editora-executiva do R7 Rio

A violência estampada nos jornais está longe daquela sentida na carne.

À criança flagrada nesta semana pelo jornal O Globo tomando banho num bueiro do centro do Rio, reservamos uma pouca parcela da nossa indignação, enquanto viramos a página do periódico e nos esquecemos por completo daquela violência.

Engolimos em silêncio a execução de um PM com 17 tiros, no último sábado (29), em São João de Meriti (Baixada Fluminense), enquanto comemoramos, lá no fundo do pensamento: "Ainda bem que não sou eu".

O cardápio é tão extenso, as solução tão longínquas, impossíveis, que nem nos damos mais ao trabalho de digeri-las. As violências.

Desde que me mudei para o Rio de Janeiro e fui além dos limites da turística zona sul temo a bala perdida que não me encontrou ou o criminoso de fuzil em riste ao dobrar a esquina.

Nascida e criada na cidade de São Paulo, cheguei ao Rio há quase quatro anos, quando os efeitos do programa de UPPs (Unidades de Polícias Pacificadoras) eram tímidos e a violência alcançava a todos.

Não pretendo aqui avaliar erros, acertos e ajustes dessa política de segurança. Fato é que o descontrole do Estado sobre extensos territórios da capital fluminense abria ainda mais espaço a violências inimagináveis.

— Ah, os anos 90... Você não tem ideia da cobertura jornalística dos anos 90. Em operação da polícia, era tiroteio que não acabava mais. Artilharia pesada — comentou uma vez um colega de profissão.

— Silvia, quando a gente via imagem aérea de fumaça preta, era batata: mais um microondas. — relatou outra jornalista se referindo à prática de traficantes de queimar vivas vítimas envoltas em pneus, o chamado "microondas".

— Iiiihhh... Aqui na Mangueira era rajada de tiro direto. Ouvia-se de longe.

A ocupação do Estado em favelas cariocas, onde facções criminosas agiam (e continuam a agir, diga-se), reduziu sim a criminalidade, ainda que tudo esteja há léguas e léguas do ideal.

Se ontem todos tinham um caso de violência recente na manga, da zona sul à baixada, hoje ela se concentra mais em áreas pobres — claro que as demais áreas não estão blindadas.

São o Amarildo; o estupro coletivo realizado por PMs no Jacarezinho; mulheres, idosos e crianças vítimas de balas perdidas em tiroteios entre polícia e bandido nas comunidades; mais de cem PMs mortos só neste ano em serviço e em folga... Exemplos não faltam.

Cruzar parte da cidade, da zona sul ao subúrbio, é tarefa da qual não abro mão. Minha dose diária de realidade. Para mim, a violência é um monstrão debaixo da cama.

Na noite do segundo turno das eleições deste ano, um tiquinho dele apareceu para que eu não deixe de acreditar que ele existe. Para que eu não confie demais nessa fantasia de que somos blindados, de que temos o "corpo fechado".

Voltava de Benfica, na zona norte, para casa em um carro insulfimado (quem estava de fora não nos via dentro do carro  — eu, uma colega e o motorista). Já havíamos passado diante da Mangueira e de sua estátua de Cartola, quando ao dobrar uma esquina, demos de cara com uma blitz policial.

Sentava no banco da frente. O motorista parou o carro, acendeu a luz interna e baixou o vidro elétrico. Procedimento padrão. Aos olhos do PM, conforme a janela se abria, surgiu aos poucos a imagem de uma mulher - o cabelo, a testa, os olhos, o nariz, a boca — falando com o marido ao telefone, o cotovelo apoiado na janela.

Num átimo, como um golpe marcial, vi o cano de seu fuzil baixar e mirar o meu nariz a menos de 1 m de distância.

Sem parar de falar ou perder o raciocínio, mantive o celular na orelha direita, enquanto levantei devargazinho a outra mão, como num clássico do velho oeste americano quando os bandidos são pegos com a boca na botija. O gesto era de "eu me rendo".

O motorista voltou a engatar a primeira marcha — certamente fora autorizado pelo policial —, enquanto eu e minha colega desatamos a rir. A gargalhada foi tão alta que olhei para trás, com medo de represália. Nosso riso foi uma espécie de grito de pavor. O motorista achou que era graça mesmo e me tranquilizou:

— Pode deixar. A gente não conta para ninguém que você levantou os braços.

*SILVIA RIBEIRO é editora executiva do R7 no Rio. Colunista convidada, escreve no R7 Cultura todo primeiro sábado do mês. A opinião dos colunistas convidados não reflete, necessariamente, a opinião do R7.


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